sexta-feira, 13 de março de 2009

Abraão foi pequeno para ele - Tatiane Silva

Amigo de Ori, Jorge, Aldírio Simões, Ori Bernardo e poeta Zininho na Mercearia do Ori.


O jornalista Aldírio Simões (in memoriam) tinha razão quando, há tempos atrás, num perfil que traçou do amigo, Ori Bernardo, escreveu que Deus deveria ter se arrependido ao criá-lo e por isso se apressou em jogar a forma fora, para garantir de que aqui na Terra não haveria outra figura igual a ele. Um Ori, como relatou, já era o suficiente. Sorte a de Aldírio! Teve à sua disposição uma inesgotável fonte de inspiração para as crônicas que publicava na sua coluna, no tradicional jornal do estado, o AN Capital.
Ori Bernardo não foi apenas personagem das crônicas de Aldírio. O “Bernadão”, como o jornalista e os amigos gostavam de chamá-lo, protagonizou epopéias hilariantes por Florianópolis e região, dignas de um dia se transformarem em filme dos gêneros comédia e suspense.


A história da vida deste manezinho, que inclusive já recebeu uma comenda lhe garantindo o direito de ser reconhecido como um dos mais autênticos “Manezinhos da Ilha” gira em torno da mercearia que montou, em 1973, aos 24 anos de idade, e até hoje é palco de encontros entre amigos. Ori, desde que faleceu, em novembro de 2006, parece continuar lá de cima, tomando conta do legado deixado aos filhos, Odorico e Alex. O bar/mercearia encontra-se do mesmo jeito. O clima ali é de amizade. Os amigos religiosamente continuam freqüentando o local e parecem ainda sentir Ori por perto. Bebem a cerveja gelada, brincam e relembram as histórias inusitadas.


A rua João Meirelles, no bairro Abraão, com certeza não seria a mesma se não fosse o estabelecimento ali fixado, e muito menos, se não fosse Ori o dono. Foi exatamente na mercearia que conheceu a esposa, Dona Carina, e se inspirou para desbravar boa parte de suas trapalhadas. Os párocos da igreja da região que o digam. Há tempos os vizinhos andavam atrás do sujeito que em plena madrugada badalava o sino e tirava o sono de todos. Fizeram plantão no local, até Dona Cota flagrar Ori pendurado na corda do sino. De “cara cheia” o autor do sacrilégio havia acabado de retornar da “farra”. Mas a história não parou por aí. O vigário se apressou em tomar algumas medidas para resolver o impasse com o até então, “festeiro da padroeira”. Diminuiu a corda do sino, assim, Ori não teria mais como puxá-la, e tirou-lhe o título de “festeiro”. Não demorou muito para o padre voltar atrás na sua decisão. No ano seguinte não conseguiu encontrar ninguém na vizinhança disponível a tomar o posto deixado por “Bernadão”. Com o rabo entre as pernas teve que engolir o sermão feito ao pecador na missa dominical e lhe implorar para que voltasse ao posto de “festeiro”. O pedido foi aceito, mas algumas condições foram impostas. Deixar Ori novamente continuar tocando o sino. O acordo foi celebrado no boteco, com direito a padre embriagado e tudo.


Boêmio incorrigível e apreciador de qualquer líquido elaborado a partir do álcool, Ori preferiu não ouvir o conselho do antigo proprietário do bar, que lhe disse para não vender bebidas no balcão. Ele fez exatamente ao contrário. Comercializou todos os tipos de bebidas e assim prosperou alheio a tudo que o ex-dono havia lhe dito. Foi ali, com os amigos, entre os mais conhecidos o Oswaldo, parceiro das infindáveis peripécias, o poeta Zininho e Aldírio Simões, que tomou vários “porres” e partiu para suas incursões rumo à farra na “Fronteira do México” - região da periferia de Palhoça, carinhosamente apelidada por ele. Não deve ter sido em vão tal apelido. Ori parecia, sim, um verdadeiro mexicano, com sangue latino pulsando. Tinha o semblante típico de um, bem retratado pelos cabelos ondulados, o “cabeludo” e extenso bigode, e pelas camisas sempre estampadas e coloridas que costumava vestir, decoradas com as alegóricas correntes de contas penduradas no pescoço, e que hoje servem de amuleto para proteger o carro de um dos filhos.


Que igreja nenhuma tente convencer a viúva dona Carina de comprar seu pedaço no céu, porque este, ela sabe que tem, e garantido. Inúmeras vezes era ela quem tomava conta da mercearia, quando em plena sexta-feira, às 19h da noite, Ori resolvia fechar o boteco para festar com os amigos, e também quando ficava até quatro dias fora de casa sem dar notícias, deixando a esposa em cólicas de preocupação.
Pessoa que não possuía papas na língua, Ori costumava causar espanto nos desavisados sobre o seu linguajar escrachado. A nora Josiane, foi uma de suas vítimas. Ela conta que quando foi apresentada ao sogro, ele fora ríspido e lhe jogara um olhar atravessado. “Pensei: ele não foi com a minha cara”, lembra aos risos. A certa altura, ele precisou chamar a nora, mas esqueceu-se do nome e interrompeu a frase que pronunciava. A procura de algo que substituisse o nome da moça, ele disparou: “O cabeça de caralho...”.
O guerreiro São Jorge teve em Ori um devoto insano, mas fiel. As provas dessa fé são encontradas até hoje, mesmo depois de sua morte em alguns cantos da mercearia. Um quadro grande e um altar com a imagem de São Jorge possuem um espaço cativo em meio aos artigos alimentícios do local. A corrente com a imagem do santo que Ori costuma usar no pescoço, hoje serve de “amuleto da sorte” para os filhos.
Certa vez, quando o guerreiro se distraiu dos cuidados com o súdito, teve que acertar os ponteiros com ele. Quando o dono chegou ao seu estabelecimento, percebeu que havia sido assaltado. Foi direto tirar satisfação com São Jorge de chicote na mão: – O que tu fazes aqui seu filho #%$&*! que não cuida da venda. Te dou do bom e do melhor e me dás um prejuízo desses.

Com a saúde debilitada e problemas cardíacos Ori foi obrigado a entrar na linha. Seis anos antes do seu falecimento parou de beber por recomendações médicas. E engana-se quem pensa que, apesar de sua vida cheia de ‘estripulias’, não conseguiria viver sem o ‘gorózinho’. Ele foi fiel ao pedido do médico e virou um abstêmio. Essa foi somente uma pequena demonstração do amor que Ori tinha pela vida. Sua fome de viver fez, não somente, largar a bebida, mas seguir uma rígida dieta alimentar. Com uma existência cheia de aversão às regras, Ori mostrou-se um paciente regrado até seus últimos dias.


No dia 26 de novembro de 2006, o bairro Abraão amanheceu de luto. Com certeza o pássaro não cantou, São Jorge não ergueu sua espada e o sino da igreja não tocou. Ori perdeu a vida num acidente na BR-101. Na terra, lamento e saudade. No céu, festa, é claro! Ori, simplesmente não passou pela vida, como muitos. Viveu ela. Teve sede dela. Deixou histórias para contar, e muitas, diga-se de passagem. Não teve medo de estar aqui e viveu a mais homérica das histórias que um mortal poderia viver. Deixou um legado rico. Um bar tradicional na Ilha, família e amigos. Dois deles ao perceberem que uma reportagem em homenagem ao amigo estava sendo feita, aproximaram-se do balcão. “Ori foi um dos melhores seres humanos que já conheci. Ele era muito parecido comigo”, disse Seu Sérgio. Já Seu Anacleto, mais animadinho, depois de uma cervejinha relembrou um momento vivido com o amigo: “Numa sexta-feira à noite fomos comprar uma pizza e só voltamos no sábado”, conta aos risos. Amigo fiel, ele não revela por nada o que andaram aprontando aquela noite.

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